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Edición N° 36/37 - marzo 2005

A Paris de Baudelaire na construção da filosofia urbana de Walter Benjamin

Por:
Antonio Carlos Gaeta
* (Datos sobre el autor)


O “Trabalho das Passagens” de Walter Benjamin reúne os seus mais importantes escritos. A cidade de Paris é o foco dessa reflexão.

O discurso benjaminiano, reconhecidamente complexo e povoado de influências teológicas e marxistas, contempla diversos sujeitos intérpretes de Paris. Benjamin apresenta, interpreta e se fundamenta nessas outras cidades. Entre elas destaca-se a Paris de Baudelaire.

O estudo de Benjamin dirige-se para várias das dimensões baudelairianas: o poeta, o crítico da modernidade e testemunha da modernização social e urbana. A sensibilidade e vivência urbanas de Baudelaire são particularmente importantes para a filosofia benjaminiana. De fato, no esboço de projeto intitulado “Paris, capital do século XIX”, Benjamin traz como um dos famosos pares “Baudelaire ou as ruas de Paris”. Dos diversos pares propostos no esboço será este o que ficará definido para o trabalho final das Passagens. A preocupação de Benjamin com tríades espaço – tempo - sujeito tem em Baudelaire a grande escolha.

Na parte concluída para o Trabalho das Passagens, a referência mais importante a Baudelaire faz-se com a obra prima “Flores do Mal” e, em menor grau, com “Meu Coração Desnudado” e “O pintor da vida moderna”.

Flores do Mal, nascida (1857) em anos de opressão (Napoleão III) e de radicais e autoritárias transformações urbanas em Paris (Haussmann), traz diversas abordagens da grande cidade e que serão tema da filosofia de Benjamin. Em sua composição destacam-se as partes: “Introdução”, Spleen e Ideal; Quadros Parisienses; O Vinho; Flores do Mal; Revolta; e A morte.

A obra poética revela o estado de ânimo de Baudelaire. O início pelo spleen apresenta o sujeito crítico da modernidade. O spleen é o entediado da vida. Desse modo, em “Spleen” (poema LXXVII):

Sou como o pobre rei de algum país chuvoso/ Rico, mas incapaz, moço, e no entanto idoso,/ Que as lisonjas dos preceptores desprezando,/ Vai com seus animais, com seus cães se enfadando,/ Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,/ Nem seu povo morrendo em frente do balcão./ Do jogral favorito a grotesca balada/ Não mais lhe desenruga a fronte acabrunhada;/ Todo flores-de-lis, é um mausoléu seu leito,/ E as aias, que acham todo príncipe perfeito,/ Já não sabem que traje impudico vestir/ Para fazer esse esqueleto moço rir./ O sábio, que fabrica o seu oiro, em vão luta/ Por lhe extirpar do ser a matéria corrupta,/ E nem nos tais banhos de sangue dos Romanos,/ De que se lembram na velhice os soberanos,/ Conseguiu aquecer essa carcaça insulsa/ Onde, em lugar de sangue, a água do Letes pulsa.



Ou em Spleen (poema LXXVIII):

Quando o céu baixo e hostil pesa como uma tampa/ Sobre a alma que, gemendo, ao tédio ainda resiste,/ E do horizonte todo enleando a curva escampa,/ Destila um dia escuro e mais que as noites triste;/ Quando a terra se torna em úmida enxovia/ Onde a Esperança, como um morcego perdido,/ Nos muros vai bater a asa tímida e fria/ E a cabeça ferir no teto apodrecido;/ Quando a chuva, a escorrer suas cordas tamanhas,/ De uma vasta prisão as grades delineia,/ E a muda multidão das infames aranhas/ No cérebro da gente estende a sua teia,/ Sinos badalam, de repente, furibundos/ E lançam contra o céu um rugido insolente,/ Como espíritos que, sem pátria e vagabundos,/ Começam a gemer recalcitrantemente./ __ E enterros longos, sem tambor e sem trombeta,/ Desfilam lentamente em minha alma; a Esperança,/ Vencida, chora, e a Angústia prepotente avança/ E em meu crânio infeliz planta a bandeira preta.



A negação de Baudelaire aos modelos familiares tradicionais e a dificuldade em se fazer reconhecer pela sensibilidade marcaram a sua formação e refletiram-se ao longo de sua vida. Embora tenha herdado a fortuna do pai em 1842, sua família o interditou através de uma tutela judicial sob o argumento do esbanjamento com amigos do meio artístico. A partir daí observamos um Baudelaire marcado pela errância de moradias. Supõe-se que tenha vivido em torno de 44 endereços, até a sua morte com 46 anos. A explicação, segundo Robert Sctrick __ um de seus intérpretes __ não estaria somente na miséria:

A miséria, sem dúvida. Mas também o desejo de evasão, a sede de esquecer do mundo e de si mesmo. Aparece sem cessar em suas cartas uma necessidade de sono, uma necessidade de contestar tudo o que há de vergonhoso em si. Assim ele escreve a sua mãe, em 26 de março de 1853: ‘Há momentos em que sou tomado pelo desejo de dormir infinitamente, mas eu não consigo dormir porque eu penso sem parar’. Sentença terrível, característica dessa dupla vontade contraditória: destruir-se e ser. Talvez, destruir-se por ser.” (1998: p. 20)



Esse estado de ânimo encontrou afinidades em Benjamin, justamente pelo olhar enviesado, estrangeiro, revelador de uma riqueza que o homem cotidiano não costuma perceber.

A obra de Benjamin destaca mais diretamente “Quadros Parisienses”, parte de Flores do Mal na qual a cidade ganha ainda maior destaque. Em 1921, Benjamin já havia se debruçado sobre esses poemas e traduzido-os para o alemão. Sete dos dezesseis poemas aí contidos são reproduzidos em parte ou na íntegra ao longo do texto central __ “Paris do Segundo Império” __ das Passagens Parisienses: O Sol; O Cisne; Os Sete Velhos; As Velhinhas; A uma Passante; O Esqueleto Lavrador; O Crepúsculo Vespertino.

Se observarmos a parte central do Trabalho das Passagens __ composta por A Boêmia, O Flâneur e A Modernidade __ e a correlacionarmos com a a principal obra de Baudelaire, Flores do Mal, temos o que segue em termos de presença de versos baudelairianos. Em A Boêmia são citadas partes dos poemas “O vinho dos trapeiros” (de O Vinho), “Abel e Caim” (de Revolta), “As litanias de Satã” (de Revolta), “A negação de São Pedro” (de Revolta) e “Ao leitor” (de Introdução). Em O Flâneur é citado integralmente o poema “A uma passante” (de Quadros Parisienses), e parcialmente “Spleen” (o segundo, de Spleen e Ideal) e “O crepúsculo vespertino” (de Quadros Parisienses). Em A Modernidade são citados os poemas “O sol” (de Quadros Parisienses, citado duas vezes), “As velhinhas” (de Quadros Parisienses, citado duas vezes), “A alma do vinho” (de O Vinho), “O albatroz” (de Spleen e Ideal), “As queixas de um Ícaro” (poema de juventude que não faz parte de Flores do Mal), “O cisne” (de Quadros Parisienses), “O crepúsculo matinal” (de Quadros Parisienses), “O esqueleto lavrador” (de Quadros Parisienses), poema XXXIX (de Spleen e Ideal), “Lesbos” e “Mulheres malditas: Delfina e Hipólita” (poemas de Flores do Mal, suprimidos por ordem judicial), “Convite à viagem” (de Spleen e Ideal) e “Os sete velhos” (de Quadros Parisienses)

A obra de Baudelaire, além de toda a sua complexidade e riqueza estética, é importante para Benjamin pela afinidade com o estado de ânimo e olhar do qual parte o poeta. E também pela afinidade com seu cotidiano e realidade de vivência e reflexão. De um lado, há o olhar de desconforto, de inadaptado, que revela com maior precisão o caráter transitório da alma da vida moderna. De outro, há o retrato da grande cidade, produto paradigmático da nova sociedade. O encontro dos dois aspectos dá-se na procura da interioridade na cidade moderna. A propósito, Benjamin afirma sobre a cidade de Baudelaire: “A Paris de seus poemas é uma cidade submersa” (1991a: p. 39).

Benjamin, pensador dialético e das tensões, encontra na sensibilidade de Baudelaire o destaque aos aspectos contraditórios presentes na sociedade moderna. Benjamin desenvolve uma metodologia na qual as transições e os enigmas são caminhos importantes. Baudelaire, por sua vez, trata poeticamente dos estados transitórios, revelado no próprio título da obra maior, Flores do Mal (e mesmo nos títulos iniciais desta, ou seja, As Lésbicas e Os Limbos). Os estados vagos, imprecisos, transitórios são identificados à modernidade. São também essas características do texto de Baudelaire que atraem Benjamin, além do olhar nostálgico, entediado e inadaptado.

A poesia de Baudelaire tem seu interesse voltado ao universo cotidiano representado pela cidade, na qual procura a vida interior e o que ela pode conter de simbolicamente universal, como em Benjamin. Mas, além disso, o poeta procura encontrar ou transformar a própria cidade em interior.

A busca da interioridade em Baudelaire encontra uma expressão na cidade. Para Baudelaire a interioridade não está perdida para sempre. A cidade moderna __ em especial a grande cidade, Paris __ a contém, ainda que escondida. Lugares de encontro (e desencontro) são destacados, principalmente as ruas (os bulevares), a novidade urbanística realçado com as reformas no século XIX.

Baudelaire parte da percepção da perda de totalidade, constatação comum aos seus contemporâneos. Victor Hugo vê na cidade moderna a perda de uma visão de totalidade, o ocaso da arquitetura frente ao que veio da Idade Média. Mesmo em Haussmann, um não crítico da ordem política e econômica, há a consciência da perda de totalidade na cidade e a necessidade de uma reformulação que a integre, ainda que por vias autoritárias e excludentes.

Mas para Baudelaire __ como em Benjamin __ pode-se caminhar ao encontro da interioridade na própria modernidade. No interior da cidade moderna, na multidão, nos contrastes, no efêmero, a interioridade, a sensibilidade, a “alma” ainda estão presentes, escondidas, maltratadas. Esse tema crucial em Benjamin encontra uma âncora importante em Baudelaire. Benjamin procura o romantismo que se prolonga na modernidade, pleno de tensões e buscas.

Ainda que Baudelaire problematize a ausência de totalidade, desdobrada em sensação de vazio de dissolução da individualidade, o poeta persegue e encontra a beleza na modernidade. Na modernidade a beleza está no contingente e no artificial (humano, social). O belo é restaurador da individualidade e se dissolve pela ação exterior. O belo é sempre singular:

O belo pode-se distinguir em tudo o que sai do acostumado, do normal e do mediano. Inclusive o feio e o cômico, levados ao limite, são belos ... o artista tem o dever de ser uma exceção, de sentir mais que os demais e de maneira distinta; só marginalizando-se da sociedade pode estar em condições de analisar, interpretar e, dentro dos limites de suas possibilidades, orientar e dirigir a sociedade” (ARGAN, 1975, p. 78).



O cuidado e interesse para com o desprezado, o descartado e o detalhe também estará presente em Benjamin, acoplado à idéia de encontrar no particular a sua universalidade. A cidade será vista através dessa perspectiva: daí a contraposição à posição de Haussmann que vê Paris como um plano único, através do único olhar, conquistador, e que se impõe às individualidades.

O reconhecimento por Baudelaire da importância ao desprezado e ao detalhe está conectada a sua defesa da individualidade. Os micromundos urbanos são valorizados. Benjamin aproximará esses lugares particulares aos dramas e sonhos escondidos, projetados por indivíduos e grupos sociais especiais.

Tais grupos sociais restritos (trapeiros, velhos, poetas e outros iluminados), bem como os lugares particulares a eles associados, são reveladores e refletem uma universidade clara. Escancaram questões da modernidade como a mercantilização, o tempo útil, o ideal de progresso retilíneo, a derrota de sonhos, a dissolução do passado e o conflito entre o indivíduo e a massa.

Assim como Baudelaire faz na poesia, Benjamin constrói através desse método __ ou seja, o de utilizar particularidades urbanas para falar da grande cidade e de utilizar grupos especiais para falar da sociedade moderna e da humanidade __ uma universalidade que não é ofuscante como é a visão totalitária que tudo escurece (“a luz que cega”). Essa iluminação dos lugares, em Benjamin, retoma temas do dilema do sagrado diante da laicidade que caracteriza a sociedade moderna, aproximando-se do conceito clássica de urbe romana, referida ao lugar sagrado, orbitando a chama sagrada.

A importância que o detalhe e o desprezado alcançam na poesia de Baudelaire e na obra de Benjamin representa resistência. A sociedade moderna, avassaladora, destrói não apenas o que do passado restou, bem como suas verdades e heranças. A lógica social moderna procura evitar, igualmente, toda remontagem, pois impõe destruição permanente e renovação. Dessa luta resta uma realidade que é vista em Baudelaire como um amontoado. Mas é a partir desta constatação que se constrói a beleza, o sentido e a unidade:

A natureza exterior fornece ao artista só uma oportunidade incessantemente renascente de cultivar esse germe; ela é apenas um amontoado incoerente de materiais que o artista é convidado a associar e a ordenar, um incitamentum, um despertar para as faculdades sonolentas. Para falar de modo preciso, não existem na natureza nem linha nem cor. É o homem que cria a linha e a cor. São duas abstrações que extraem sua igual nobreza de uma mesma origem” (1988b, P. 66).



A mesma constatação aparece na apreciação da cidade. Benjamin afina-se com tal sensibilidade. Para Benjamin, o mundo moderno é esfacelado. O sujeito está ameaçado na sua preservação e manifestação de sua essência. No entanto, como Baudelaire, Benjamin encontra a possibilidade de interpretar a sociedade e a cidade modernas a partir de construções e reconstruções diversas dos fragmentos que a compõem.

A importância dada a cada fragmento, a cada qualidade, a cada ser, por Benjamin, também está na medida em que cada um contém toda a universalidade. Comparemos com a seguinte observação de Baudelaire sobre Delacroix:

Quem, entre as pessoas clarividentes, não compreende que o primeiro quadro do mestre continha todos os outros em germe?” (1988b, p. 65).



O rejeitado em Baudelaire interfere profundamente na elaboração da abordagem benjaminiana. Em “A Modernidade” (A Paris do Segundo Império em Charles Baudelaire), Benjamin traz, não por acaso, uma descrição em prosa de Charles Baudelaire escrita um ano antes de O Vinho dos Trapeiros:

Aqui temos um homem __ ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis”. (1931-32: p. 249-250)



Tal descrição de Baudelaire é seguida da observação: “Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico” (BENJAMIN, 1991a, p. 78).

Em sua análise, Benjamin não apenas retrata o sentimento de Baudelaire, mas envolve-se com ele. A sua afirmação de que “trapeiro ou poeta __ a escória diz respeito a ambos; solitários ambos realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregam ao sono ...” (BENJAMIN, 1991a, p. 78) aproxima o rejeitado economicamente e o culturalmente distinto frente ao mundo da ditadura do econômico. O trapeiro, como o artista, encontra, faz, recria. Além disso, “embora] o trapeiro não [possa] ser incluído na boêmia ... desde o literato até o conspirador profissional, cada um que pertencesse à boêmia podia reencontrar no trapeiro um pedaço de si mesmo. Cada um deles se encontrava, num protesto mais ou menos surdo contra a sociedade, diante de um amanhã mais ou menos precário” (BENJAMIN, 1991a, p. 17).

Os “pedaços” e o “precário” ganham valor metodológico completando o “rejeitado”. Na análise de Paris, Benjamin elege espaços urbanos particulares e não a cidade como um todo. São espaços de encontro __ como os cafés e os bulevares __ e espaços urbanos rejeitados __ como as passagens envidraçadas e as tavernas dos limites da cidade. A presença do espaço urbano rejeitado tem importância na construção da filosofia urbana benjaminiana. O autor fixa o olhar não no passado que desapareceu mas naquilo que do passado restou, despojado de seu charme, apagado em sua aura. Nesse aspecto, o “fixo” exemplar de Benjamin são as passagens envidraçadas, lugares privilegiados de encontros no século XIX e que vão se apagando no século XX. Guardam no entanto o tesouro escondido de uma época __ suas fantasias, dramas e sonhos __ e que ainda são potenciais reveladores para o nosso mundo.

Os “fluxos” baudelairianos, o da multidão nos bulevares, o dos trapeiros, velhos e do próprio poeta pelas ruas, também são os de Benjamin. Aproximam-se os fluxos em torno da mercadoria, o fluxo diante do tempo marcado pelo relógio e pelo trabalho produtivo ao caminho torto, ao sem rumo, ao que busca um sentido. Mas é o “caminho tortuoso”, enviesado __ comandado pelo olhar estrangeiro, destacado em Baudelaire, capaz de encontrar segredos e revelações no “insignificante” urbano, no específico __, que fará parte fundamental na filosofia de Benjamin. É deste modo que é apresentada e entendida a cidade. Acompanhemos Benjamin na sua análise de Baudelaire:

... Baudelaire gostava de apresentar como artísticos os traços marciais. Quando descreve Constantin Guys, a quem era muito apegado, visita-o numa hora em que os outros dormem: ‘Ei-lo curvado sobre a mesa, fitando a folha de papel com a mesma acuidade com que, durante o dia, espreita as coisas a sua volta; esgrimindo com seu lápis, sua pena, seu pincel; deixando a água do seu copo respingar o teto, enxugando a pena em sua camisa; perseguindo o trabalho rápido e impetuoso, como se temesse que as imagens lhe fugissem. E assim ele luta, mesmo sozinho, e apara seus próprios golpes’. Envolvido nessa ‘estranha esgrima’ Baudelaire se retratou na estrofe inicial de O Sol, talvez a única passagem de As Flores do Mal que o mostra no trabalho poético. O duelo em que todo o artista se envolve e no qual ‘antes de ser vencido, solta um grito de terror’ está compreendido na moldura de um idílio; sua violência passa a segundo plano, e permite a seu charme aparecer. Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros/ Persianas acobertam beijos sorrateiros,/ Quando o impiedoso Sol arroja seus punhais/ Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,/ Exercerei a sós a minha estranha esgrima,/ Buscando em cada canto os acasos da rima,/ Tropeçando em palavras como nas calçadas,/ Topando imagens desde há muito já sonhadas.” (BENJAMIN, 1991a: 68)



O caminho cambaleante, o tropeçar, chama a atenção de Benjamin. Esse rumo destacado por Baudelaire é apresentado nas escolhas benjaminianas dentro da obra do poeta. E não somente na análise, destacada acima, mas também na seleção de poemas: O sol; O vinho dos trapeiros; As velhinhas; Os sete velhos.

Observemos a tortuosidade em Baudelaire, a partir de estrofes destes poemas. Em O Sol:

... /Exercerei a sós a minha estranha esgrima,/ Buscando em cada canto os acasos da rima,/ Tropeçando em palavras como nas calçadas,/ Topando imagens desde há muito já sonhadas./ ...” (citado em Benjamin)

... / E quando vai à rua, à maneira de um poeta,/ Ele sabe aureolar a coisa mais abjeta, / Sozinho e sem rumor, como um rei se introduz/ Nos hospitais da mágoa e nas mansões da luz!.



Em O Vinho dos Trapeiros (O Vinho):

Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,/ Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,/ (citado em Benjamin)

...

Muita vez, ao rubor de um revérbero e ao vento,/ Que a chama sempre é um golpe e ao cristal um tormento/ ...

...

Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos,/ Derreados sob montões de detritos hostis,/ ...

...

Voltam, cheios de odor de pipas e barrancos,/ Acompanhados dos que a vida tornou brancos, /



Em As Velhinhas:

Tímidas, a vergar, ides costeando os muros;/ E ninguém vos saúda; a que sóis destinadas?/ ...

...

Ruínas! minha família! ó velhas solitárias!/ ...



Em Os Sete Velhos (Quadros Parisienses):

Eu ia, qual herói de nervos retesados,/ A discutir com meu espírito ermo e lasso/ Por vielas onde ecoavam carroções pesados. (citado por Benjamin)

...

De repente um ancião cujas pobres sacolas/ ... / A cujo aspecto só choveriam esmolas,/ Se não fosse o rancor que ardia em seu olhar,/ Surgiu tendo no fel as pupilas molhadas;/ Enquanto aguça a neve, a das noites mais rudas,/ A sua barba imensa, esguia como espadas, / ...

...

Não era curvo mas quebrado, a sua espinha/

Dava com sua perna exato ângulo reto,/ Tanto que seu bastão, que o seu cariz sublinha,/ Ia-lhe dando o ar, como o passo incorreto/ ..

...

Eram em tudo iguais, do mesmo inferno oriundos,/ Centenários os dois, visões barrocas ambos,/ Iam com o passo igual a misteriosos mundos/ ...





Nestes poemas define-se um olhar, uma afinidade, que encontra no caminho irregular, no ritmo irregular, a crítica e a revelação da época moderna, dentro de um espírito filosófico e romântico.

É a tortuosidade reveladora, a leitura a contrapelo. Desse tortuosidade, porém, Benjamin traz o caminho da revelação. Desse modo, do “ofício” do poeta, do lírico, do romântico, do revolucionário, do rejeitado, há não somente os caminhos tortuosos, a busca do desprezado, do insignificante, do pequeno, do específico, do menor, do cotidiano da cidade, do dia a dia de cada um. Há o iluminar. A iluminação __ agora vista de um outro ângulo __ é o grande tema da modernidade e da libertação humana.





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* Datos sobre el autor:
* Antonio Carlos Gaeta
Doctor en la Universidade Estadual Paulista (São Paulo)

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